Júlio Abreu António: “É emocionante quando recuperamos a visão da pessoa que andou cega”

Economia

Licenciado em Psicologia pelo Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) e em Oftalmologia pela Faculdade de Medicina da Universidade Katyavala Bwila, ambas instituições situadas em Benguela, Kapukula Júlio Abreu António é o actual director-geral do Centro Oftalmológico Internacional de Benguela.

Em entrevista ao Jornal de Angola, o médico contou que o seu sonho é ver o Centro ser referência no contexto internacional pelo tratamento diferenciado aos pacientes e pela publicação de artigos científicos.

Quer fazer do Centro Oftalmológico Internacional de Benguela uma referência pela publicação de artigos científicos?

Queremos firmar protocolos de cooperação com outras unidades e universidades, de modo que os nossos quadros possam ir lá fazer formações, e vice-versa. O objectivo é ter no Centro Oftalmológico de Benguela todos os serviços clínicos e cirúrgicos completos, não só para cataratas, mas também para cirurgias complexas.

Sempre sonhou ser oftalmologista?

Na verdade, o meu sonho era ser futebolista. Eu gostava muito de jogar futebol quando era mais novo. Porém, com a ajuda da família, hoje não me arrependo de ser médico oftalmologista, porque consigo recuperar a visão de pessoas que andam ou andaram cegas durante muitos anos. 

Tem o controlo do número de cirurgias feitas por si, nas vestes de médico oftalmologista de referência em Benguela?

Sem medo de errar, já fiz entre 1500 a 2000 cirurgias de cataratas. Claro, algumas com complicações e outras mais simples. É sempre emocionante quando recuperamos a visão de alguém que andou muitos anos cego.

É mesmo natural de Benguela?

Sim. Nasci junto à Avenida Ministro Vieira Machado, próximo a Angola Telecom, na cidade de Benguela. Sou filho de dois professores, com o pai em memória. Mas, tive a sorte de ter bons tios também, um dos quais irmão da minha mãe chamado Cesário Ferreira Canjulo, a quem considero pai. Tenho com muita estima, também, pela outra minha tia, Maria Luzia. Na altura que eu queria ser futebolista, a frequentar a 7ª classe no actual Liceu Comandante Cassanje, ela viu que estava a interferir muito na minha vida estudantil, e já ficava preocupada.

Lembro-me que nesse ano reprovei e o meu pai, nas vestes de director da Liga, na Calomanga, tirou-me da Cassanje para a escola onde era responsável. Na altura, a frequentar a 8ª classe, a minha mãe tira-me de Benguela para o Huambo, como castigo. O Huambo estava a reerguer-se da guerra. Era uma província quase isolada e a minha ida era uma demonstração de castigo e também para ver se me desligasse do futebol e não me perdesse. Tenho a pós-graduação em Oftalmologia, pelo Instituto de Pós-Graduação em Ciências Médicas do Ministério da Saúde. Sinto-me feliz por isso.

O que fez no Huambo?

Frequentei o ensino médio no Instituto Médio de Saúde durante quatro anos. É ali onde aprendi a ser homem.

Como assim?

É no Huambo onde aprendi a lavar a roupa, cozinhar, fazer pão… porque eu era o mais velho da casa. Tinha outros primos e naquela fase de guerra não havia padaria no Huambo. Tinha que fazer o pão em casa. No tempo seco, no Huambo, as cacimbas secam e quando assim acontece tem que se acarretar água. E naquela região faz frio. Eu saía da cama às 5h00 da manhã para ir acarretar água. Aquilo é que me fez homem.

Como foi o seu regresso a Benguela, depois do tempo que passou no Huambo?

Com o ensino médio de saúde feito no Huambo, entre 2001 e 2004, regressei a Benguela. O objectivo era dar sequência, ingressar no ensino superior. Fui fazer o teste na Faculdade de Medicina da Universidade Katyavala Bwila. Na primeira tentativa reprovei. Não queria perder o ano todo sem estudar. Com isso, fiz um teste no Instituto Superior de Ciências da Educação e aprovei. Fui estudar e em 2008 aconteceu o concurso público no sector da Saúde. Como enfermeiro, fiz o concurso público e fui colocado no Centro Oftalmológico de Benguela. Por isso, digo sempre: eu tenho história no Centro Oftalmológico de Benguela, porque comecei a trabalhar aqui com 23 anos. Hoje tenho 39 anos de idade e sou médico especialista, título adquirido no Instituto de Pós-graduação em Saúde do Ministério da Saúde.

Na altura, continuou a estudar?

Na altura trabalhava de manhã com o director Salomão Chiambo. De facto, o médico Salomão, a quem substituí, sempre me orientou. Tenho-o como um pai, por ser uma pessoa que conseguiu, mais ou menos, facilitar aquilo que era o meu objectivo. Por isso, damo-nos muito bem até hoje. Só para ter uma ideia, ele (Salomão Chiambo) é que me indicou para ser director-geral do Centro Internacional de Oftalmologia de Benguela.

Sei que também já foi instrumentista no Centro Internacional de Oftalmologia…

De manhã vinha trabalhar e à tarde ia para o ISCED frequentar o curso de Psicologia. Passados alguns anos, fui colocado no bloco operatório como instrumentista. Na altura, os médicos eram todos cubanos. Eu como tinha vontade e curiosidade de aprender, comecei a ganhar a confiança dos cubanos. Já me deixavam instrumentar. Foi ssim que ganhei gosto pelas cirurgias de Oftalmologia.

Como foi possível fazer o ISCED e hoje ser oftalmologista?

Em 2008 abre a Faculdade de Medicina em Benguela e eu como já estava a terminar o ISCED não fiz o teste. Preferi terminar o ISCED em 2008 e em 2009 fiz o teste na Faculdade de Medicina, onde ingressei. Terminei o curso de Medicina em 2014 e no ano seguinte, nas vestes de trabalhador do Centro Oftalmológico, preferi prosseguir por essa via. Aliás, eu não gosto muito de mudar de caminho. Aquilo que me faz sentir bem é o que eu sigo. Por isso, preferi fazer carreira na área de Oftalmologia.

Sempre trabalhou no Centro?

O Centro Oftalmológico foi o meu primeiro emprego. Consegui entrar na Faculdade de Medicina pelo Centro Oftalmológico. Nunca tive problemas. Tive um Professor que sempre me aconselhou para que eu escolhesse o que poucos fazem. Lembrou-me que o país teve que contratar oftalmologistas estrangeiros. Significa que aqui não tinha. De facto, eram poucos que faziam Oftalmologia. O Professor dizia que, seguindo essa especialidade, eu não seria mais um, mas sim “o oftalmologista”. Assim aconteceu.

 Em 2015 entro para a especialidade de Oftalmologia. Estudei de 2015 a 2021. Depois de concluir o curso, defendi o meu título de médico especialista na Faculdade de Medicina da Universidade Katyavala Bwila.

Sei que já foi director clínico deste Centro. Em que ano aconteceu isso?

A minha nomeação como director clínico do Centro Oftalmológico Internacional de Benguela aconteceu em 2022. Isto é, um ano depois da minha formação como especialista. Significa que de direcção tenho dois anos. Um ano de director clínico e outro de director-geral, completado no passado mês de Agosto.

Essa é a história. É uma história difícil, mas tive familiares muito próximos que me ajudaram bastante para eu poder concretizar os meus objectivos.

Afinal de contas, o que é o Centro Internacional de Oftalmologia de Benguela?

O Centro Internacional de Oftalmologia de Benguela foi fundado a 15 de Agosto de 2008.  Na altura, a mão de obra médica era toda expatriada, maioritariamente cubana, desde estatísticos, enfermeiros… E eu, na altura, também como enfermeiro, acabava de ingressar nos quadros da Saúde e fui colocado aqui, com mais cinco enfermeiros.

Qual é a caracterização que se pode fazer do Centro Internacional de Oftalmologia de Benguela?

É um Centro de referência nacional, com um volume de trabalho e complexidade elevados. Recebemos pacientes de toda Angola, sem excepção, de modo a dar resposta àquilo que tem sido o problema da saúde visual no país.

Quando o volume de trabalho é elevado, os desafios idem. É o que ocorre?

Temos muitos desafios. Não estamos no nível de satisfação que a gente deseja do ponto de vista da Oftalmologia como especialidade ou como ciência, mas os desafios que temos apontam nessa direcção.

Quais são as patologias mais frequentes e que são atendidas no Centro?

As doenças mais frequentes têm sido as cataratas, o pterígio, além dos casos de glaucomas, que têm sido, de facto, um grande desafio para a Oftalmologia em Angola e no mundo, porque é uma doença silenciosa e que causa cegueira irreversível. Muitas vezes, os pacientes quando vêm à consulta já estão cegos por glaucoma e não sabiam. 

Existem outras patologias do foro oftalmológico que são atendidas no Centro?

Temos tido alguns pacientes com retinopatia diabética, que é a complicação da diabetes no olho, que também causa cegueira irreversível. Conforme um doente diabético vai à insuficiência renal, também um doente diabético vai à cegueira pela retinopatia diabética. As complicações de retinopatia hipertensiva também podem levar à cegueira, para além de outras doenças congénitas que apoquentam a nossa população.

O que lhe apraz avançar relativamente às cirurgias já feitas?

Em termos de cirurgias, de 2008 a Julho de 2024 realizamos 565.561 cirurgias. Do total de cirurgias, 22.967 a cataratas, 19.277 ao pterígio e 3.566 de plástica ocular, que é uma cirurgia estética.  

Doentes com glaucoma, quando não respondem ao tratamento medicamentoso, são submetidos à cirurgia. Já tivemos 1.145 cirurgias a esses pacientes.

Os casos de catarata são mais   simples de operar?

Os doentes que sofrem de catarata podem desenvolver uma complicação tardia e há necessidade de fazer uma intervenção a laser. Para esses casos, já tivemos esse serviço durante algum tempo, mas ficamos por aí mais ou menos há cinco anos. Mas, com a ajuda do Governo, e dentro daquilo que são as nossas finanças, conseguimos comprar um novo aparelho para esse tipo de intervenção.   Estamos com esse aparelho já há dois meses. É um equipamento caro e que se usa muito nas complicações tardias de cirurgias de catarata.

Já foram atendidos alguns pacientes nesta especialidade?

Já realizamos, até Julho, 613 operações a laser de catarata. Glaucoma também tem que se fazer tratamento com laser e esse equipamento que trata a catarata secundária com laser também trata a glaucoma. Também já tivemos um total de 1.693 casos. Realizamos também outras cirurgias, não menos importantes, que a gente classifica   do ponto de vista estético. Para esses casos, tivemos 6.136 cirurgias realizadas.

Aos pacientes também é feito seguimento?

Temos aqui as especialidades de seguimentos anteriores à catarata e glaucoma, a subespecialidade de retina clínica. Para os próximos anos o desafio nosso é a da retina cirúrgica. Temos aqui, também, as especialidades de oncologia ocular e de oftalmologia-pediátrica. Em média nós atendemos, semanalmente, 1.100 doentes vindos das 18 províncias do país.

O Centro Internacional de Oftalmologia de Benguela atende também pacientes vindos do estrangeiro?

O que acontece com pacientes vindos do exterior do país é o facto de que a cirurgia à catarata fora do país é cara e temos muitos pacientes que saem daqui e querem operar no estrangeiro. O que acontece é que quando chegam lá fora apresentam-lhes o plafond e como não conseguem pagar, regressam e vêm para o nosso Centro, onde a comparticipação é de apenas 3.500 kwanzas. A comparticipação é feita via Referência Única de Pagamento ao Estado (RUPE).

Há também muitos doentes que estão no exterior, têm familiares cá e pela referência da nossa unidade, vêm para aqui para serem operados. Têm sido esses os casos.

Já recebeu pacientes estrangeiros oriundos do exterior?

À semelhança do que tem ocorrido com os nacionais, há dias recebi um cidadão de nacionalidade portuguesa que veio operar a catarata. Os pacientes saem daqui e vão para Portugal ou Espanha para fazer a consulta e ao chegarem lá o diagnóstico acusa catarata e a cirurgia são entre 4 mil e 5 mil euros, e eles voltam para nós e são aqui operados com sucesso.

A cirurgia da catarata é uma das mais realizadas no mundo?

Entre todas as cirurgias, as de catarata são das mais realizadas no mundo.

Porquê?

A catarata é algo a que o indivíduo não consegue fugir, porque muitas vezes acontece por envelhecimento e todo o cidadão com esperança de vida alta chega à velhice. Além disso, a catarata tem outras causas, como questões congénitas, que também são um desafio. Tínhamos deixado de operar por falta de anestesista, mas já estamos a trabalhar nisso, com o apoio do Hospital Geral. Nos próximos tempos vamos recomeçar a operar as cataratas congénitas.

Qual é a situação real em termos de recursos humanos?

A falta de especialistas é o que acontece com o nosso hospital. A falta de médicos subespecialistas. Existem especialistas em Oftalmologista e dentro dela temos as subespecialidades, aquelas que eu disse anteriormente, que são o glaucoma (segmento anterior), retina, oftalmopediatria, estrabismo…. Formaram-se poucos oftalmologistas a nível local. A maior parte era constiuído médicos expatriados, cubanos, muitos deles através da cooperação Angola-Cuba e estão a diminuir. Muitos estão a regressar e já não estão a voltar.

O Centro tem quantos médicos oftalmologistas?

De momento temos apenas 11 médicos oftalmologistas, dos quais seis cubanos e cinco angolanos. É com este número que estamos a dar cobertura a toda a procura. Temos apenas três angolanos que operam, um dos quais sou eu, a par dos médicos cubanos.

Quais são as principais dificuldades enfrentadas?

As dificuldades são as subespecialidades, que mesmo Cuba quase não tem. Com o programa de formação do Ministério da Saúde, conseguimos advogar junto da Direcção Provincial de Saúde para o envio ao Brasil de um dos médicos que estava a fazer a especialidade em Oftalmologia, com vista a terminar a especialidade lá e depois, consoante o que forem os nossos recursos, aproveitarmos aquele quadro para fazer lá a subespecialidade.  Neste momento há dificuldades nas subespecialidades de glaucoma, principalmente, e de retina clinica e cirúrgica. De forma paliativa eu é que atendo os doentes com problemas de retina. Os doentes são avaliados por mim. Se tiver um caso que precise de intervenção fora da nossa unidade, é encaminhado. O importante é fazer o diagnóstico precoce e saber o que o paciente tem.

O Centro tem um plano de acção?

De facto. Melhorar as infra-estruturas é uma das prioridades definidas no nosso plano de acção. Colocamos uma lavandaria no Centro, uma coisa que não tinha. Com o ganho, as batas do pessoal ficam no hospital. Ninguém leva a bata para casa. Trabalhou, deixou a bata e as senhoras, durante o fim-de-semana, lavam e engomam. O trabalhador ao chegar segunda-feira ao serviço encontra a bata bem engomadinha e pronto a trabalhar. Tivemos que melhorar as infra-estruturas que se estavam a deteriorar. Este é o meu primeiro mandato. Acabo de completar um ano agora, no mês de Agosto. Além das obras em curso, o objectivo é reequipar o hospital.

O que se pretende atingir?

Fonte: Jornal de Angola

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