Luanda: Registados 120 crimes de clonagem e troca de cartões multicaixa de Janeiro de 2023 a Julho do ano em curso

Sociedade

A morte, por acidente de viação, do jovem Adérito Ricardo, de 23 anos, em Fevereiro deste ano, deixou a família em estado de choque. Preocupado com as despesas do funeral, o pai, António Ricardo, dirigiu-se a um terminal de pagamento (multicaixa), na zona do Kinaxixi, para levantar 350 mil kwanzas, que pediu adiantado no serviço. Diante do ATM, António Ricardo teve dificuldade para manejar a máquina, talvez pela perda do filho, o que o levou a pedir ajuda a um jovem que estava na mesma fila.

Entre várias artimanhas, o suposto ajudante trocou o cartão multicaixa e memorizou o código PIM, ao mesmo tempo que explicou ao ajudado, António, que o cartão tinha problemas. Inconformado com a notícia, António dirigiu-se a outro multicaixa para tirar o dinheiro. O que ele não sabia é que o cartão tinha sido trocado.

Ao tirar satisfação num dos balcões do seu banco, recebe a informação de que o cartão foi trocado e os 350 mil kwanzas que tinha na conta foram transferidos para uma outra conta.  Diante desta realidade, o sofrimento do pai aumentou. A pressão arterial subiu repentinamente e teve de ficar sentado mais de 30 minutos para relaxar e de seguida telefonar a um familiar para ir ao seu encontro.

 Sem dinheiro para arcar com as despesas do óbito, o funeral por pouco seria adiado, tendo conseguido um segundo empréstimo para enterrar o filho.  

Essa realidade é vivenciada por centenas de cidadãos na capital do país, que viram trocados, furtados ou clonados os cartões multicaixa e acabaram por perder todo o dinheiro disponível na conta.

Se o óbito do filho de António Ricardo ficou quase comprometido, Domingas Junqueira teve dificuldades em pagar propinas no colégio das filhas, devido à troca do cartão num ATM, na Ilha de Luanda. Por causa da dificuldade em manejar o multicaixa, Domingas pediu ajuda a um jovem que, possivelmente, estava à espera dessa oportunidade. Bem apresentado, o jovem acede ao convite e digita o código do cartão, que permite o levantamento de 68 mil kwanzas, dos quatro milhões que a titular tem na conta. Três dias depois, foi novamente ao multicaixa e o código dava errado. Com dúvidas, dirigiu-se a uma agência do seu banco, onde ficou a saber que não tinha dinheiro na conta, na sequência de uma alegada transferência, que não soube explicar. No mesmo instante, a pressão arterial baixou e quase caiu. As lágrimas caem incessantemente. Não acredita no que ouve. “Quem fez isso, meu Deus?”, questiona Domingas, ao mesmo tempo que clama por ajuda dos funcionários do banco.  

Os relatos sobre transferências não autorizadas e clonagem de cartões multicaixas, inquietam alguns cidadãos, que diante do prejuízo financeiro, abrem queixa-crime junto das esquadras de Polícia, na esperança de verem recuperado o dinheiro perdido. Uns conseguem, outros nem tanto.

Desaparecimento de dois milhões de kwanzas

Marizete Conceição, 35 anos, não conseguiu recuperar os dois milhões de kwanzas desaparecidos da sua conta bancária. A professora de formação tinha o valor na conta, fruto de um credito salário. O dinheiro seria para aumentar nas despesas do seu casamento, que já estava marcado. No dia 23 de Janeiro do ano passado, ao se dirigir a um restaurante com um familiar, pagou o almoço via multicaixa. Horas depois, recebeu notificações no telefone de movimentos na conta. Ignorou as mensagens, uma vez que tinha consigo o cartão. A curiosidade levou-a, no dia seguinte, a consultar o saldo num multicaixa. Para seu espanto, a conta estava sem dinheiro. Inconformada e com calafrios na barriga, dirigiu-se ao seu balcão e recebeu a informação de que o dinheiro havia sido transferido e gasto em compras de bens diversos. Levou as mãos à cabeça e saiu do banco a chorar. Situação idêntica viveu o ancião António Emanuel, 61 anos, engenheiro informático e funcionário público.

Como agem os burladores

O número de burladores de cartões multicaixa tem crescido paulatinamente. Os grupos são compostos por dois a quatro elementos, cada um com uma missão específica. Uns incentivam familiares e amigos a abrirem contas bancárias financiadas pelo grupo, e a seguir, recebem os cartões multicaixa, sob alegação de que têm um negócio por fazer. Outro comparsa controla o código do cartão durante o manuseamento no multicaixa por parte da pessoa a quem vão burlar. Um outro integrante dá conversa à vítima para trocar o cartão enquanto um outro pode ser o motorista da viatura.  Tudo é concertado ao pormenor. Ao chegar a um multicaixa, colocam-se na fila, enquanto outros ficam ao lado, com o cartão ou cartões nas mãos. Caso chegue a sua vez, simula consultar e pede ajuda do comparsa. Depois, retornam à fila, mas sempre atento ao um possível pedido de ajuda. Outra alternativa é quando notam alguém a demorar por dificuldade para manejar a máquina, eles se oferecem para ajudar. Foi o que aconteceu com a Inácia Junqueira, 64 anos, que estava no ATM para levantar a pensão de reforma. Pediu ajuda a um dos supostos burladores que trocou o cartão e retirou 75 mil kwanzas.

Burladores atrás das grades

Num dia normal de trabalho, dois jovens, bem vestidos, dirigem-se, às primeiras horas da manhã, a um multicaixa, no Bairro Azul, onde encontram Miguel, João 29 anos, com dificuldades em manejar o ATM. João solicita ajuda a um dos jovens em causa, para carregar a televisão. Depois de dar o código do cartão ao estranho, ao recebé-lo de volta nota que foi trocado, o que o levou a desconfiar, travando uma forte discussão. A situação chamou atenção dos demais cidadãos, que diante da confusão, chamaram a Polícia e o suspeito acabou detido, sendo descoberto com 32 cartões multicaixa de diversos bancos.

Por cima da mesa improvisada da Esquadra da Ilha, Distrito Urbano da Ingombota, estão à mostra mais de 100 cartões multicaixa trocados por supostos marginais. Há, segundo os investigadores da Polícia, cartões com dinheiro, cujos valores variam entre 70.000 e 700.000 e até mesmo um milhão de kwanzas. A maior parte é do Banco BAI.

Há quem contraiu crédito bancário e perdeu todo o dinheiro para os burladores, com o risco de pagar ao banco um valor não usufruído.

 “Preferimos ficar nos multicaixa com muita gente, porque fica mais fácil burlarmos as pessoas”, explica Nsimba Kisimba,45 anos, natural de Cabinda.

O seu comparsa Rafa Ntunga conta que a troca dos cartões é feita de forma célere, bastando uma simples distração do dono. 

Cartões passíveis de clonagem são os de banda

Questionado sobre até que ponto a clonagem de cartões multicaixa, através do uso do ATM pode ser evitado, o administrador Executivo e porta-voz da Empresa Interbancária de Serviços, S.A. (EMIS), Joaquim Caniço, explicou que os cartões passíveis de clonagem são os de banda magnética e não os de chip. Pelo que apela para maior cuidado com o código PIN, esclarecendo que, mesmo que o burlador tenha clonado o cartão, vai precisar sempre do PIN, caso contrário, de nada valerá à clonagem.

Joaquim Caniço adianta que os utentes de cartões, apesar dos inúmeros apelos para os cuidados a observar para a guarda do PIN, continuam a facilitar de forma consciente ou inconscientemente. Por isso, disse, ao colocar o PIN, o cliente deve cobrir com outra mão, para que outra pessoa não consiga ver o código e nem trocar o PIN.

Joaquim Caniço aconselha que, ao fazer uma transação com TPA, nunca perder de vista o seu cartão. Se possível, acrescentou, não se deve entregar o cartão ao atendedor, mas sim o próprio utente colocar o cartão no TPA e, caso não haja sucesso nessa operação, exigir do atendedor o comprovativo do insucesso da operação e só depois considerar uma nova tentativa, mas nunca perder de vista o cartão.

Questionado se quando alguém perde o cartão multicaixa ou é furtado, até que ponto a empresa emissora pode intervir para anulá-lo, o administrador da EMIS respondeu ser possível intervir para a anulação do cartão, por solicitação do utente, através do Call Center, a partir de um dos dois contactos telefónicos que estão no verso de cada cartão multicaixa. “O Call Center da EMIS nunca liga para os utentes de cartões, as chamadas só têm um sentido – do utente do cartão para o centro de contacto da EMIS. Se houver condições, pode contactar directamente, em tempo útil, o banco emitente do cartão e consegue-se a pretendida anulação”.

Não obstante isso, sublinhou, é crucial que o utente observe algumas práticas prudenciais, tais como não manter elevados montantes em contas de uso corrente do cartão. “Isto pode ser feito por via de abertura de subcontas não associadas a qualquer cartão, onde podem ser transferidos avultadas somas ou através do serviço de card protector. Com este serviço, o cliente define que montante pretende que esteja disponível para fazer pagamentos”, esclareceu.

Registados 120 crimes de burla com cartões multicaixa

A Direcção Provincial de Investigação de Ilícitos Penais do Comando Provincial de Luanda da Polícia Nacional registou, de Janeiro de 2023 a Julho deste ano, 120 crimes de clonagem e troca de cartões multicaixa.  Deste número, 16 processos foram concluídos e 104 estão em fase de instrução preparatória, com 19 suspeitos em prisão preventiva e 46 outros sob termo de identidade e residência.      

Segundo o superintendente-chefe Adilsom Santos, chefe de Departamento de Investigação de Ilícitos Penais do Comando Provincial de Luanda da Polícia Nacional, a corporação recebe, em média, três queixas por semana relacionadas com a troca e clonagem de cartões multicaixa.

O oficial da Polícia Nacional explicou que os burladores costumam perfilar-se nos ATM, como se quisessem transferir ou levantar dinheiro. No momento em que entram em contacto com o ATM, colocam determinado objecto no orifício de entrada de cartões, o que causa a inoperacionalização da máquina. Quando a vítima já identificada se dirige à máquina e tenta introduzir o seu cartão, apercebe-se que não entra. É neste momento que aparece um dos suspeitos que se predispõe em ajudar.  Diante da pessoa a ser ajudada, o suspeito observa o tipo de cartão que a vítima tem em mãos e retira do bolso um cartão idêntico. Usa manobras de distração para trocar o cartão e, com o código memorizado, vai para outro multicaixa retirar o dinheiro da conta da vítima e repartem em transferências e compras. Algumas vezes, dirigem-se às bombas de combustível e, em combina com um funcionário, retiram o dinheiro.

Em alguns casos, segundo Adilsom Santos, os burladores ficam muito tempo na fila do multicaixa e acabam por pancar propositadamente na vítima, que está com o seu cartão na mão. Com o cartão no chão, o suspeito apanha-o, troca-o e entrega outro à vítima. Quando este o tenta usar, nota que não dá certo. Com a vítima fora de si, aparece um outro comparsa que informa à vítima que, através do ATM, pode se fazer o bloqueio do cartão.

O responsável do DIIP-Luanda esclareceu que não existe um perfil concreto da vítima, pelo que todos os utentes de multicaixa estão sujeitos à clonagem ou troca de cartões.

Quanto aos suspeitos, disse que também não têm um perfil exacto, sendo que, para o êxito das suas acções, circulam com cartões multicaixa de vários bancos, sem qualquer utilidade, tendo recordado o caso de um jovem que foi detido em posse de mais de 100 cartões de vários bancos.  

Alerta aos cidadãos

A Polícia Nacional alerta aos cidadãos a ficarem atentos sempre que solicitam ajuda a pessoas estranhas nos multicaixa, para evitar a troca de cartões. Caso não haja alternativa, então o cliente deve estar atento com o movimento da pessoa que lhe está a ajudar. Deve evitar entregar o cartão à pessoa e muito menos o código.

 O superintendente-chefe Adilsom Santos alertou igualmente os cidadãos para evitarem responder a mensagens provenientes de números estranhos que se fazem passar por funcionários de instituições bancárias, solicitando a actualização de dados bancários, porque podem ser manobras fraudulentas para a consumação de uma burla.

15 milhões burlados na Internet

O chefe do Departamento de Ilícitos Penais da Polícia Nacional de Luanda apelou aos cidadãos a prestarem especial atenção aos perfis falsos nas redes sociais (por exemplo, Facebook, WhatsApp, Instagram), para não caírem em burlas e evitar perdas financeiras.

O responsável citou o caso de uma cidadã que foi burlada em 15 milhões de kwanzas na compra de determinada mercadoria via Internet. O crime ocorreu quando a lesada acedeu a um perfil falso do Facebook, de uma suposta loja de venda de material diverso, trocando mensagens, tendo transferido o valor para a conta do burlador, sem observar o produto.

Em caso de compra de mercadorias via Internet, Adilson Santos aconselha as pessoas a fazerem o pagamento na hora da entrega do produto e de forma presencial.

Burlas de divisas na Internet

Além de tipo de burla relatado acima, existem também fraudes com divisas. Nesses casos, a vítima é contactada através do Facebook, Instagram ou WhatsApp, por alguém que fraudulentamente se faz passar por um conhecido e diz que tem divisas em troca no valor abaixo do mercado, o que leva a vítima a aceitar e transferir kwanzas para determinada conta do suspeito, que em seguida desliga o telefone, consumando assim a burla.

Até ao momento, indicou, existe o registo de alguém que perdeu 15 milhões de kwanzas ao pretender comprar dólares a um preço mais barato.

As burlas na Internet, disse, envolvem maioritariamente homens, mas não se descarta o envolvimento de mulheres. Algumas acabam por estar envolvidas por serem titulares das contas onde são transferidos os valores burlados.

Casos no município de Luanda

Em 2022, a Secção de Investigação de Ilícitos Penais do Município de Luanda encaminhou para julgamento, no Tribunal da Comarca de Luanda, seis indivíduos por crime de clonagem, troca de cartões multicaixa, transferência bancária fraudulenta, o que resultou num prejuízo de 18 milhões de kwanzas às vítimas.

 Os prevaricadores foram condenados a um ano e seis meses de prisão. No mesmo ano, cinco indivíduos foram detidos por uso e abuso de cartões multicaixa, julgados e condenados a um ano de prisão, tendo deixado um prejuízo às vítimas de mais de sete milhões de kwanzas.

O ano passado, aquela Secção deteve oito indivíduos que se dedicavam à clonagem de cartões multicaixa. Os indivíduos eram de nacionalidades congolesa democrática, nigeriana e maliana e alguns angolanos naturais de Cabinda.

Até ao momento, a Secção de Investigação de Ilícitos Penais do Município de Luanda controla acima de 15 processos desta natureza, com 20 detidos.

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